Cinema, Café & Arte

DREYFUS – DE VOLTA PARA O FUTURO...

Elio Luiz Mauer
Em meio a tantas outras notícias sobre ele, viemos sendo informados de que Roman Polanski, o  cineasta  que há alguns anos  nos  presenteou com o  “O Pianista”, estava elaborando  um  novo script, um novo filme, curiosamente  baseado num episódio  histórico ocorrido há algum tempo na França, mas com repercussão mundial: a acusação, o julgamento e a condenação do judeu Alfred Dreyfus, sua degradação e o  posterior processo pelo qual, em novo julgamento, foi inocentado e libertado. Este não foi um encadeamento tão simples como parece a primeira vista. 

Quem se interessa pela história judaica, e em especial pela história do anti-semitismo, ou seja, a história dos últimos dois mil anos  de  ações agressivamente insultuosas contra o povo judeu,   certamente convive com este nome e a tragédia que o rodeia: Alfred Dreyfus, o capitão do exército francês (um dos poucos judeus a servir nele) acusado de alta traição por entregar documentos militares secretos ao inimigo alemão. Como se sabe, ele foi condenado a prisão perpétua a ser cumprida na ilha do Diabo, na Guiana Francesa, não por acaso assim denominada e local de preferência para onde eram encaminhados condenados considerados perigosos ou reincidentes. Durante os cinco anos em que permaneceu na ilha,  Dreyfus se debilitou e descreveu o seu sofrimento, em função do fato de se ver como um patriota francês sendo tratado como  traidor, em especial, como  um judeu traidor. Durante todo este período sua família não descansou, não deixou de buscar por um novo julgamento, pelo reconhecimento de sua inocência e do erro do veredicto anterior.  Durante este intervalo outro oficial do exército, de nome Esterhazy , chegou a ser acusado dos crimes atribuídos ao judeu Dreyfus, mas após um rápido e ao que tudo indica suspeito julgamento,  foi inocentado. Mas não era mais possível tapar o sol com a peneira: neste meio tempo, a situação de Dreyfus extrapolara a questão puramente legal e a sociedade francesa  se dividia, se polarizava: um dos seus grandes escritores e intelectuais, Emile Zola, assumiu a liderança  dos que acreditavam na inocência de Dreyfus, junto com a atriz Sarah Bernahrd, o escritor Anatole France, o cientista Henri Poincare e o político, médico e escritor George Clemenceau, dono do jornal L´Aurore, que oportunamente publicou um  artigo do amigo Emile Zola, sob o nome "J´Accuse", o que só acentuaria esta polarização , opondo estes chamados Dreyfusards  aos anti Dreyfusards, como Eduard Dunmart, diretor do jornal anti semita “La Libre Parole”. A França estava irremediavelmente cindida, e esta segmentação, como poucos poderiam imaginar, se perpetuaria, se manifestando com certa freqüência em relação a questões intelectuais e políticas nos tempos que se seguiram. É possível que esta e outras manifestações anti semitas tenham preparado os conhecidos atos contra judeus e contra líderes judeus como Leon Blum, chegando ao ápice durante a república de Vichy . (Mesmo recentemente, nas manifestações dos coletes amarelos, resquícios desta divisão, da xenofobia,  do nacionalismo monarquista e do anti semitismo se fizeram sentir). Se opondo a estas características políticas da elite francesa, se torna evidente que os Dreyfusards  representavam uma França liberal, democrática e altamente diversificada  na sua religiosidade, no extremo oposto ao grupo anti dreyfusard, retrogrado, anti semita, basicamente representante de um catolicismo fanaticamente contra outras denominações religiosas, propugnando pela necessária continuação da condenação do judeu traidor, mesmo contra as evidencias que os donos de um pensamento livre já vinham apresentando  pela revisão do processo e libertação, assim como compensação do judeu que tinha sido degradado, ofendido e desonrado em praça publica. Um dos que estiveram presentes à deprimente cerimônia foi o correspondente de um importante jornal de Viena: Theodor Herzl. O que ele  viu nas ruas e jardins de Paris, lotados de um populacho exigindo o pior para o judeu traidor (o ódio se manifestava muito mais em relação ao judeu e menos ao suposto traidor descendente direto daquela figura mítica do "mau" discípulo ou apóstolo)  não era mais do que a erupção do conhecido anti-semitismo europeu, que durante séculos esteve presente de forma mais ou menos latente, a espera de uma adequada oportunidade para se manifestar.

A reavaliação de todo o processo Dreyfus não deixa dúvidas -  ele não foi condenado  pelas provas e sim pelo preconceito anti semita vigente na sociedade e no exercito francês, incapaz de realizar um processo isento dentro dos preceitos fundamentais da então relativamente jovem máxima da Revolução Francesa - Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Diferente teriam sido os fatos se estes princípios tivessem realmente sido absorvidos pelo povo, pela sociedade e pelas lideranças francesas. Em relação a este aspecto, parece que neste episodio ninguém foi mais francês do que Alfred Dreyfus. Em um documentário que foi apresentado há anos na televisão israelense, entrevistando pessoas da família Dreyfus,  ficou evidente que  o patriarca, tão agredido como judeu, nunca se mostrou tão judeu na sua essência, colocando sua condição de francês muito acima de qualquer outro aspecto de sua natureza. Nem parece ser diferente sua família, que não  se mostra estar mais próxima do judaísmo e do sionismo , que  de forma inconsciente  o patriarca e seu processo tanto ajudaram a fomentar, mas não a criar,  considerando-se que mesmo antes do espetáculo assistido por Herzl em Paris,  já há tempos  estavam ativas importantes outras correntes sionistas.

Talvez a grande contribuição  de Herzl  tenha sido a iniciativa de mobilizar o mundo judeu, no sentido de criar o Congresso Sionista, que se mostrou capaz de unificar estas correntes e com o tempo determinar a criação  do  “Estado Judeu”, como o próprio o chamou .

E, no entanto, porque voltar a Dreyfus hoje? Por que Polanski, aos quase noventa anos resolve dedicar o que talvez seja  uma de suas últimas obras a um tema aparentemente ultrapassado, situado no final do século dezenove, início do século vinte? 

De fato, o caso não se esgota na questão jurídica - era o capitão judeu culpado ou inocente? Ao redor desta questão, uma série de outras se impuseram: era (ou é)  a França realmente um país livre, democrático para todos os seus cidadãos? São  seus cidadãos iguais perante a lei sem diferenciação? Podem todos os franceses, independente de cor, religião ou origem esperar de seus iguais a esperada fraternidade?

Os fatos relacionados ao processo Dreyfus mostraram que  a resposta a estas questões é um retumbante NÃO. Mas não só isto: os franceses se mostraram xenófobos, intolerantes aos que consideravam diferentes; não foram poucos os que foram fisicamente agredidos na ruas de Paris; muitos dos que se envolveram na defesa do capitão judeu sofreram pressões e agressões que se mostraram intoleráveis, vários chegando a se libertar através do suicídio.  Não poucos dos familiares e defensores   tiveram que pensar em deixar a França e alguns como o próprio Emile Zola, o autor do citado artigo "J´Accuse" ("Eu acuso" -  o nome original do filme de Polansky)  o fizeram para retornar só depois da absolvição do condenado. Mas, por mais que a revisão tenha sido um ato de salvação da honra dos tribunais franceses, nas hostes anti dreyfusistas não se deixaram convencer e, principalmente, não deixaram suas crenças anti-semitas. Nestas hostes, como costuma ocorrer, a revisão foi vista como um erro e como uma prova da influência judaica, marca registrada do anti-semitismo: se é culpado, é porque é judeu; se é inocentado é porque o poder judaico  entrou em ação.

Existe certamente mais de uma razão, pessoais ou não para a escolha de Polansky. Não vamos entrar aqui nas questões que envolvem o próprio cineasta. Parece que a intelectualidade foi capaz de fazer esta diferenciação e já indicar  o filme para vários prêmios. Uma destas, certamente, é o momento político na Europa, com o renascimento da direita extremada, próxima (por mais que tente esconder) da direita que foi vencida na Segunda Guerra Mundial. O excepcional diretor de "O Pianista" não poderia ficar indiferente a este movimento retrógrado na política mundial, onde cada vez parece mais fácil ressuscitar velhos e odiosos personagens, Hitler (comemorando seu aniversário) ou Goebels (se inspirando em suas pretensas obras). Em relação a ambos, interessante rever o filme alemão "A queda" e definitivamente se identificar ou não com aquelas esdrúxulas figuras. Polanski parece temer , pelo que vê , ser este processo mais ou menos camuflado de ressurgimento destas imagens, suas idéias e, quem sabe logo logo, suas milícias, e como num passado não tão remoto, a proibição de idéias diferentes, e por que não até, a queima de livros (num primeiro passo, podem se contentar com a proibição de suas leituras, sob os mais variados argumentos).  

Naquele passado não tão remoto todas estas manifestações  acabaram acompanhadas de violência em relação àqueles que se revelaram intolerantes com as idéias impostas de cima para baixo, seja como ideologia, seja como orientações educacionais. Enfim, aqueles que de forma alguma admitiam idéias e comportamentos impostos, sem qualquer possibilidade de discussão.

Do acima escrito não se pode senão ansiar por ver "O Oficial e o Espião", nome que recebe o filme no Brasil. Será pelo menos um bom filme,  mesmo quando de Polanski se espera sempre mais, como tivemos a oportunidade de ver não só em "O Pianista", como em "Chinatown", "Repulsa ao sexo", "O Inquilino" e "Bebê de Rosemary".

P.S.: ao final das contas, para vergonha da justiça francesa, parece ter ficado provado que Esterhazy realmente foi o espião e o traidor.

Posts